Nietzsche, Mojica e Zé do Caixão

Zé do Caixão - um personagem tão forte no imaginário popular que funde-se à José Mojica Marins - ele nunca mais recuperaria o seu nome de batismo. Numa estratégia para fazer um cinema capaz de "encarar os próprios medos", o cineasta propõe um intrigante estilo (escatológico e sádico) que viria a compôr uma das peças do cinema trash dos anos 60.

Fruto de um pesadelo, no qual um "vulto" o teria arrastado ao seu próprio túmulo, Mojica concebe, em 1963, um personagem cujas unhas alongadas constituem um saudoso empréstimo do inesquecível Nosferatu e de quem o misterioso e sombrio estilo é fortemente inspirado no clássico Drácula. Zé do Caixão sacode os valores tradicionais e os critérios absolutos da sociedade. Niilista, desvaloriza a lógica e o porquê. Sedendo por um herdeiro perfeito, é capaz de atitudes absolutamente imorais, motivadas pela sua obsessão por sangue e, sobretudo, na crença de sua superioridade intelectual.

Tais atributos me fazem lembrar, pois (é óbvio, numa outra construção de atmosfera imagética), da dupla hitchcockiana de Rope, absolutamente engajada num crime fundamentado no conceito de Übermensch, descrito por Nietzsche em seu seu livro Assim Falou Zaratustra, no qual apresenta os passos através dos quais o ser humano pode torna-se um "homem superior" (ou "super-homem"), enumerando-os: 1) desprendimento dos valores morais; ; 2) sede de poder e inovação e; 3) contínuo processo de superação. Características fortemente intrínsecas a Zé do Caixão: um despudorado cético capaz de qualquer conduta para avançar no seu objetivo; um homem que confia e diz "sim" a tudo o que é proibido, desprezado e maldito.

Herdeiro do cinema surrealista de Buñuel e mesmo do saudoso expressionismo alemão de Robert Wiene, Mojica Marins propõe uma nova vertente, extremamente prolífica, do horror no cinema brasileiro que, apesar de desprezada pela historiografia clássica, insere-se na tradição mais ampla do território cult, capaz compreender grandes realizadores, como Humberto Mauro.

Apresentado ao público pela primeira vez através do filme À Meia-Noite Levarei Sua Alma, Jose(fel - amargo) Zanatas (Satanás?) - ou Zé do Caixão - conferiu à Mojica diversas premiações e notabilidade mundial. É pena: no Brasil, o artista não é devidamente reconhecido e o seu trabalho é tão satirizado e elevado à ridícula comicidade! É fato: poucos conhecem, verdadeiramente, a obra do cineasta José Mojica Marins! 

E é fácil constatar o que eu digo. Basta comparar, por exemplo, as elogiosas reportagens estrangeiras acerca da obra do cineasta e perceber o quão respeitado e admirado é seu trabalho no exterior, em detrimento do tratamento que lhe é conferido no Brasil. O Soundonsight, por exemplo, dedicou uma coluna na qual descreve a interpretação de Mojica como "anti-religiosa (um paradoxo, inclusive, que comprova o enfrentamento das suas próprias fobias, uma vez que o cineasta é um católico praticante), anti-governamental e furiosamente subversiva" no gênero no qual se dispõe, tomando forma em meio a uma brutal ditadura através de um trabalho sem paralelo. Em A lifetime achievement award for brazil's godfather os the fantastic, o crítico de cinema de horror, Rick D, chega mesmo a conferir à Zé do Caixão (traduzido por ele, Coffin Joe), particularidade semelhantes ao Marquê De Sade, Jodorowsky, Salvador Dali e, já citado, a Nietzsche.

Ademais o legado que deixa o cinema de Mojica, desponta como parte integrante  da sua sucessão no viés do horror, a sua filha, Liz Vamp que, influenciada pelo pai, já lançou um filme.

Abaixo, um entrevista interessante aonde o cineasta fala um pouco sobre os 50 anos do personagem, além do documentário O Universo de Mojica Marins, produzido em 1978, por Ivan Cardoso.




Nas palavras do próprio Mojica: 

Zé do Caixão é brasileiro. Zé do Caixão é Zé! Não é Mister, não é Tanica, não é Steven, não... Zé do Caixão é Zé! É nosso! É caboclo! Então, isto é importante: Zé do Caixão é uma criação brasileira, então, é muito importante. E eu acredito que já é um mito, é um patrimônio brasileiro e eu poderei amanhã ou depois morrer sossegado que a minha missão está cumprida para com o cinema: já existe um personagem brasileiro.

(...)

Eu, simplesmente, por não esconder, dizem que o meu mundo é estranho. Estranho por que? Por fazer coisas que todo mundo gostaria de fazer, mas não consegue? Estranho por procurar o desconhecido? Por querer saber o que vem depois da morte? Todos querem saber! Eu me jogo!

(...)

Não sou ateu, eu tenho religião porque acredito em algo. A minha religião é o cinema. O cinema por que tem uma imagem para mostrar.

(...)

Através de um fita minha, ele (o espectador) se assiste e sente-se bem por que tudo aquilo o que ele gostaria de fazer, quem sabe, até matar... aquela pessoa que ele gostaria de ver destruída - mas não vai fazer isto por que tem um justiça e existe uma Lei que ele desconhece, mas a teme (exatamente porque a desconhece!) que seria a Lei pregada pela crença. Então, ele está realizado, porque viu aquela imagem. Não fez nada daquilo, mas mentalmente, passou por aquilo. Está saciado.

E, para finalizar, vale à pena assistir ao vídeo no qual o jornalista Ivan Cardoso comenta a experiência de produzir o documentário e um pouco acerca da obra de José Mojica Marins.