Andrei Rublev e a catarse de uma Rússia medieval

Anatoli Solonystin
 interpreta Rublev
Muito mais árduo despir-se revelando o prejulgamento do que o próprio corpo flácido. Conheçamos, pois, Andrei Rublev e seus contidos traços pastéis.

Não é consenso quando ele nasce e morre. Especulam os especialistas que tais ocasiões ocorreram, possivelmente, entre 1360 e 1427/30. Da mesma maneira, não é sabido o local de seu nascimento. No entanto, provavelmente viveu na Trindade Lavra de São Sérgio, um mosteiro localizado em Sergiyev Posad, próximo à Moscou, atualmente, o lar de mais de 300 monges. Naquele tempo, no entanto, recém fundado por um dos mais venerados santos russos, Sérgio de Radonezh, que construíra uma igreja de madeira em honra à Santíssima Trindade em Makovets Hill. 

Os miúdos por aqui, no entanto, são apenas ornamentos que auxilam na compreensão do breve contexto da sua expressão artística. Ademais, pretendemos, pois (e aí sim, mora o real proveito!), olhar com maior atenção e cuidado a obra de Rublev, através de um constante exercício de nudez... tão paradoxal à sua temática. Muito difícil, penso eu, seria conceber o artista e a arte medieval (ou a de qualquer período) se não anacronicamente, numa verdadeira viagem através dos tempos (no plural? o tempo é uno ou fragmentado...?), dos espaços e das ideologias, como que agarrados e entregues verdadeira e apaixonadamente a uma máquina do tempo.

A Idade Média ficou conhecida como "Idade das Trevas" por ser vista como um período de retrocesso de pensamento, atraso científico, intelectual e cultural. Uma Era marcada por graves problemas políticos, guerras (no contexto russo, as invasões tártaras), os surtos de doenças, a sociedade absolutamente fragmentada (feudos), pouco produtiva e extremamente explorada. Nem mesmo o clima e a vegetação pareciam piedosos com aquele povo que, há poucos anos, enfrentara um outro terrível ataque: a Peste Negra.

É realmente um desafio (apesar de extremamente escancarada a motivação que o levou a mover-se) olhar para trás e propor entender como o ser humano repensa a sua maneira de viver, muda a rota, assume novas convicções. Um lugar no qual a religião constitui a principal (e incontestável) fonte de saber e a verdade se esconde atrás de muros impostos pela Igreja; no qual a mitologia enlaça as expansões; não existe a imprensa, o intercâmbio entre os povos ainda é impensável. Eles, aliás, sequer imaginam o que vem a ser uma Bíblia! ...Suponho que, para esta sociedade, a imagem, a visualização seja exorbitantemente relevantes. Os sentidos rogam por estímulos... lamentam o apedeutismo... tentam vislumbrar a tênue passagem de qualquer expressão de humanidade.

Diferente da arte contemporânea (e romântica), voltada para si, individualista (com a cínica face sorridente para Renascimento - guardadas as ressalvas desta minha colocação), aquela arte tinha uma missão universalista e, por isto, deveria ser simples, pois as pessoas precisavam dela. Parafraseando Tarkovski em seu "Esculpir o Tempo", o artista é um servidor, e está eternamente tentando pagar pelo dom que, como que por milagre, lhe foi concedido. Não é à toa que um dos maiores filmes do cineasta (são homônimos, inclusive) seja exatamente uma homenagem à Rublev!


Talvez pela diferente concepção de autoria da época, o único trabalho autenticado do pintor é o ícone da Trindade (à esquerda). Releitura de uma pintura anônima do século XVI , conhecida como "Hospitalidade de Abrão" (uma alusão ao Génesis 18). Na sua versão, Rublev remove as figuras de Abraão e Sara através do uso sutil de composição e simbolismo, forcando o tema na Santíssima Trindade.

Mais do que recomendada a obra-prima de Tarkovski, "Andrei Rublev" (URSS, 1969), assim como a leitura do texto de Paulo Ricardo de Almeida, logo abaixo.


Referência Bibliográfica:
>> RENASCIMENTO. Coleção Quero Saber. Editora Escala: 2008.
Filme:
>> TARKOVSKI, Andrei. "Andrey Rublev", 1966, 183 min.
>> http://www.contracampo.com.br/61/andreirublev.htm