Por que escrever?

Na tentativa de explanar um pouco mais acerca do tema, me deparei com o artigo "Por que escrever?", da Marizabel Santos Almeida e, eis que, como em toda boa leitura, mergulhei na fantástica aventura do desconhecido.

Quatorze páginas capazes de me presentear ilustres antepassados (Anais Nin, Bataille e Mallarmé, citando apenas alguns) e conceder um rumo na reflexão acerca da escrita.


Marizabel inicia o artigo questionando acerca da sub-condição sulamericana: por que escrever se, até mesmo para muitos letrados, o livro continua a ser um artigo de luxo? E alerta, de antemão, que o texto pergunta muito mais do que responde.

Na sequência, segundo a autora, a tradição oral está fadada a perder-se, ao contrário da escrita, que sobreviverá ao tempo, transpondo a própria morte e preservando sua existência, assim como a do autor. Faz uma retomada histórica, remontando a necessidade do ato de expressar, desde os desenhos rupestres ao ideograma e demonstra, através de uma morfo-análise, que o desenho e a escrita originam-se do mesmo lexema [1], tratando o seu distanciamento apenas de uma "evolução" (do pictograma ao ideograma - ainda usado na escrita chinesa - chegamos à organização alfabética).
Partindo de "A Significação antitética das palavras primitivas", de Freud, Marizabel navega um pouco nas curiosas possibilidades da escrita (as homofonias, polissemias, palíndromos e anagramas) para retomar uma indagação que, veja só!, o próprio Freud faz: Nós leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade... em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes.  Para Freud, a escrita de um adulto "livre" (ou seja, capaz de devanear/imaginar) é a substituição do "brincar" da sua infância.

Chegamos, então a Anais Nin (1903-1977), autora francesa, de origem hispano-cubana, famosa pela publicação de diários pessoais, que medem um período de 40 anos, começando quando tinha 12. Confesso que eu não a conhecia e, buscando mais informações acerca de sua biografia, descobri o filme, "Henry & June" (logo abaixo), que retrata o período em que Anais conhece Henry Miller e tornam-se amantes. Interpretada por Maria de Madeiros (cujo trabalho me tornei fã desde o primeiro contato, n'O Contador de Histórias'). Sobre o porquê de escrever, Anais afirmou: Eu devo tudo à escrita. Devo-lhe o fato de estar aqui a falar... O Diário mostra isso, mostra que, quanto mais eu escrevia, mais claros se tornavam os meus pensamentos, que quanto mais me expressava, mais capaz era de exprimir aos homens ou aos artistas à minha volta o que sentia ou qual era a minha posição. foi pela escrita que me ensinei a falar com os outros... Gostaria de afastar de todos o sentimento de que escrever é algo que apenas umas quantas pessoas talentosas fazem... Não são só as pessoas com dons invulgarem que narram a sua vida de maneira interessante. Na realidade, não tem nada a ver com o valor literário da obra.

O texto segue, inevitavelmente, uma discussão acerca do gênero (a qual não me estenderei por não ser importante neste contexto, mas que provocou uma pequena reflexão: existe escrita feminina e escrita masculina? Quais atributos caracterizam tal distinção, se for ela realmente pertinente?).

Retomando à questão do motivo maior para escrever, para o francês George Bataille, a escrita foi a "cura", enquanto para Hans Christian Andersen, escritor dinamarquês do séc. XIX, conhecido por escrever para as crianças (são algumas de suas obras "O Patinho Feio", "O Soldadinho de Chumbo", "A Pequena Sereia"), escrever  trazia a possibilidade de embelezar o que é feio, o desprazeroso.

Já Mallarmé, poeta e crítico literário francês, falou da agonia de enfrentar a página em branco.

Na sequência, a autora traz um trecho no qual Betty Milan interroga: O que leva um escritor a escrever, viver só com as palavras, durante dias e noites, erguer-se do nada, como afirmava Clarice Lispector? (...) Que gozo haverá na escrita para que o sujeito suporte a solidão, o anonimato, e, em certo casos, a mais completa miséria?.

Dialogando, então, com poeta alemão Rainer Maria Rilke, este parece ter respondido à indagação similar, através de uma carta endereçada à um jovem que pedia conselhos sobre como tornar-se escritor: Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma: confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?" escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquele pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade.

Por fim, chega a Michel Foucault e sua obra "O que é um autor?" onde o filósofo apresenta 4 critérios, trazidos por São Jerônimo (padre conhecido, sobretudo, por traduzir a Bíblia do grego antigo e do hebraico para o latim), que objetivam "autenticar" o autor (e através dos quais a crítica moderna o reconhece). São eles: 1) o nível constante de valor do artista; 2) a coerência conceitual ou teórica da obra; 3) a sua unidade estilística e; 4) o momento histórico definido.

Contemporâneo e conterrâneo de Foucault, Jacques Lacan afirma, conquanto (e eu me identifico à beça!): Jamais me releio sem um pouco de surpresa. Jamais imagino que seja eu que pude dizer isso e sou certamente fraco na forma de receber a carga do que eu mesmo escrevi. Ao meu ver, absolutamente conflitantes.

Tendo em vista tais reflexões, resta agitar, bolinar, remexer... tantas e tantas indagações: o que caracteriza o autor? será a espontaneidade? mas, e nos casos da "obrigatoriedade", aqueles mesmos em que é preciso escrever para pagar as contas? (o próprio Balzac exemplifica tal situação, em diversas circunstâncias de sua vida). Para quê serve o autor/escritor?

Bem, quanto à minha motivação para escrever (e absorvendo os conselhos do Rilke)... é relativa. O meu diário pessoal (abandonado há um bom tempo, por sinal) é uma degustação do vivido. Os esquemas de estudo são estratégias para reter melhor os conteúdos estudados. E esta página virtual... parafraseando o trecho final do artigo, pode ser como a evocação de Ali Babá: "Abra-te sésamo!" e eu me proponho a estar cara a cara com o inesperado.

[1]  é a "unidade mínima distintiva do sistema semântico de uma língua que reúne todas as flexões de uma mesma palavra.

Por que escrever? - Marizabel Santos Almeida 

Filme: Henry & June (1990 - Direção e Roteiro: Philip Kaufman)