Vauvenargues e a meritocracia

Referindo-se à Arte Poética de Horácio, declara, num tom aconselhável, o Marquês de Vauvenargues: leia este livro com calma; não é daqueles que a gente entende rápido.

Escritor e ensaísta francês de meados do século XVIII, ao aposentar-se da carreira militar devido às complicações físicas adquiridas durante uma campanha contra a Áustria, vê-se absolutamente deprimido e decide emergir num solitário aprofundamento intelectual. Lê, reflete, escreve e desenvolve uma Filosofia intensamente moralista, segundo a qual (bastante influenciado por Bayle e Espinosa), “Deus” não é o criador do universo, a fonte do bem e do mal, o guardião e o juiz do homem, ou o legislador divino que estabelece as regras de moralidade. É simplesmente a totalidade da natureza e suas leis inalteráreis. A moral, pois, é única e absolutamente construída pelo ser humano. É, ainda, o primeiro a afirmar a vontade de reabilitar o sentimento na literatura francesa.

O meu primeiro contato com esta icônica figura ocorre exatamente ao tomar contato com a referida obra horaciana, cujas informações bibliográficas da edição que eu li, infelizmente, não disponho e nem faço ideia de como a citação foi parar lá. Bendito fato consumado, no entanto, refletir um pouco acerca do pensamento de Vauvenargues (e mesmo me esforçar para compreender o contexto - pessoal, político e social - no qual foi desenvolvido) revela-se um gostoso desafio de análise, crítica e construção do meu ponto de vista pessoal sobre o assunto. Divaguemos, então, um pouco mais acerca dele.

Segundo Andressa Cristina de Oliveira, através de seu ensaio "Os Primórdio do Romantismo", pode-se dizer que foi um precursor de Jean-Jacques Rousseau, por seu respeito pelo passado, pelo desprezo ao progresso científico e, sobretudo, pela prevalência do sentimento em sua psicologia e em sua moral (...). A obra "Reflexões e Máximas", pouco citada na França e, sobretudo, no Brasil, exalta a insuficiência da razão, celebra as intuições do sentimento e até liga ao sentimento o que há de melhor na razão. Entretanto, é preciso ressaltar que, apesar de a obra do francês ser toda feita de “reflexão”, ele nunca despreza a razão:

CL
A razão e o sentimento se aconselham e completam sucessivamente. 
Quem consulta apenas um dos dois e renuncia ao outro, priva 
levianamente a si mesmo de uma parte dos recursos que nos foram 
concedidos para dirigir-nos (VAUVENARGUES, 2007, p.40).

XXIV
Não é dado à razão consertar todos os vícios da natureza 
(VAUVENARGUES, 2007, p.18).

CXXIII
A razão nos engana mais freqüentemente que a natureza 
(VAUVENARGUES, 2007, p.34).

CXXIV
A razão desconhece os interesses do coração 
(VAUVENARGUES, 2007, p.34).

Na primeira metade do século XVIII, acusavam-se as paixões de perturbarem a alma, de induzirem à tentação e à queda – por isso eram tão condenadas por epicuristas, estóicos e cristãos. Colocando-se contra Pascal e La Rochefoucauld, Vauvenargues afirmava que as paixões não poderiam ser nefastas, visto que o caráter do homem não é mau, e que as paixões são a fonte das mais nobres atividades e, frequentemente, das mais belas virtudes:

CXXV
Se a paixão às vezes aconselha com mais audácia que a reflexão, é 
porque ela dá mais forças para executar 
(VAUVENARGUES, 2007, p.34).

Os grandes pensamentos vêm do coração 
(VAUVENARGUES, 2007, p.35).

CLIII
Será que teríamos cultivado as artes sem as paixões? E a mera 
reflexão ter-nos-ia revelado nossos recursos, nossas necessidades e 
nossa engenhosidade? 
(VAUVENARGUES, 2007, p.63).

CCXCIV
Há sementes de bondade e justiça no coração dos homens quando 
nele impera o interesse próprio. Atrevo-me a dizer que isso não só 
é conforme à natureza, mas também à justiça, desde que ninguém 
sofra por causa desse amor-próprio ou que com ele a sociedade 
perca menos do que ganha
(VAUVENARGUES, 2007, p.78).

(...) Vauvenargues quer restituir ao homem todas as suas virtudes e elevá-lo por meio da reabilitação de suas paixões

Apesar de alheio ao questionamento acerca da Bíblia, não concebia o "livre arbítrio", propondo que a liberdade inclui determinada "segurança de vida", que depende, por sua vez, das condições políticas e sociais. Adota, assim, os princípios de Hobbes e Espinosa, segundo os quais nem as leis naturais nem a moralidade natural existem. O “bem” e “mal”, por sua vez, começam com a legislação e as regras morais estabelecidas pelo ser humano no contexto do estado. Para ele, no entanto, o ser humano é, natural e inevitavelmente, ambicioso, de maneira que a justiça absoluta torna-se inatingível e o papel do Estado se contém a minimizar os possíveis efeitos (prejudiciais) dos impulsos naturais de qualquer pessoa.

Concordo no tocante às decisões pessoais estarem intimamente relacionadas ao contexto as quais estão inseridas. Basta questionarmos: no contexto da sociedade moderna, a meritocracia (não no sentido original, empregado por Confúcio, cujo "mérito" deveria advir das virtudes e das qualidades dos seres humanos), após cair nas garras do sistema econômico, existe? E qual seria (no futuro do pretérito, por ser uma hipótese idealista) a configuração ideal para garantir a isonomia da humanidade?

No contexto mercadológico, meritocracia é sinônimo da única conveniência capitalista: lucro.  Não importa, desta maneira, se o método ou motor, (um chefe de uma multinacional, por exemplo) propulsor deste seu objetivo fundamental, é mentiroso, embusteiro, ou seja lá quais sejam as faltas éticas e/ou morais, será celebrado com um verdadeiro espetáculo de aplausos, se a fortuna entrar e a manipulação através aparelhos ideológicos for feita. O mercado premiará o comportamento imoral sempre que lhe for conveniente.

Penso que o mercado importou o lema "Fazemos QUALQUER negócio!". E a crise de 2009 foi mais bem entendida pelos filósofos do que pelos próprios economistas. E o motivo era simples: antes de crediário, o problema era ético! A ambição foi confundida com a ganância.

Diferente de Hobbes e de Locke, Vauvenargues não contrasta o estado natural (no qual os seres humanos guerrilham uns com os outros) com a vida sob o Estado, uma vez que ela é produto do próprio Estado. E retomando a minha reflexão acerca da meritocracia, como é empregada no contexto atual, este ponto de vista só reforça as minhas convicções de que ela não é sustentável exatamente por "desumanizar" o outro, como se agravantes sociais, como a criminalidade, o analfabetismo, etc - pudessem ser encarados, por exemplo, através de levianas afirmações como: "é problema dele! não estudou por que não quis! "gosta" de ser bandido!"; confirmando, assim, mais uma vez, a tese vauvenarguesiana de que o ser humano é "autopreservador" e "autoengrandecedor", uma vez que pretende se colocar numa posição imediatamente superior ao que critica, enganando a própria consciência com a crença de que a vida é uma competição justa, de que todos estão em posição de igualdade perante as oportunidades. Negando o fato de que alguns trilham caminhos bem menos árduos do que outros.

O resto é exceção.
As exceções não validam as deduções
(pelo menos cientificamente falando).

Referências Bibliográficas:
VAUVENARGUES, L. de C. Reflexões e máximas. Tradução de Hély de Bruchard e Fúlvia Maria Luiza Moretto. São Paulo: Ed. da UNESP, 2007.
ROMANTISMO, Nos Primórdios do. OLIVEIRA, Andressa Cristina de. UNESP  – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara  – Departamento de Letras Modernas. Araraquara, São Paulo.